Três meses após a morte de Chang Dai-Chien (1899-1983), o repórter Valdir Sanches e o fotógrafo Rolando de Freiras foram até um sítio em Taiaçupeba, distrito do município de Mogi das Cruzes, para mostrar as lembranças que um dos maiores nomes da arte chinesa deixou no local onde morou por vários anos. O perfil intitulado “O mestre chinês” foi publicado em duas páginas no Jornal da Tarde de 9 de julho de 1983. Leia a íntegra com a grafia original da época.
Jornal da Tarde - 9 de julho de 1983
O MESTRE CHINÊS
A história do grande Chang Dai-Chien, que viveu no Brasil.
Reportagem de Valdir Sanches, fotos de Rolando de Freitas
A primeira luz da manhã dava vida à maior obra de mestre Chang. Esse quadro animado, de tintas orientais, destacava a figura de um ancião chinês com sua longa túnica, a barba muito comprida e branca e os óculos para os olhos doentes. O mestre caminhava. Apoiado em seu cajado, movia-se pela paisagem que ele próprio criara, acompanhado por um fiel e silencioso séquito: um gato, um casal de cães e um macaco gibão.
Tomando o caminho da Árvore do Dragão Deitado, chegava ao Lago dos Cinco Quiosques. Ali, um casal de cisnes e alguns gansos pareciam esperá-lo. Chang Dai-Chien, o grande pintor chinês, vivia longos momentos de contemplação e meditação nessas caminhadas matinais, ou sentado para descansar em cada um dos cinco quiosques do lago.
À tarde, eava com a família e os discípulos; e nesse jardim de graciosa feição oriental, que compa com plantas exóticas, formosas flores, cursos de água, pedras de variadas formas, falava de seu trabalho e da vida. Nos quiosques, tomava o chá trazido de Dai Foon Tang, o Limiar do Grande Vento - o nome da casa e do clã dos Chang — pelos filhos menores.
A existência do grande mestre, considerado um dos maiores pintores chineses dos últimos séculos, amigo de Picasso, findou em abril último em Taipé, a capital de Formosa. Contava 84 anos. Deixou centenas de preciosidades pintadas sobre o papel de arroz, em museus de inúmeros países. Mas o jardim oriental, essa porção de Éden que criou com seu gênio e sua arte, ainda resiste no mesmo lugar em que o mestre viveu durante 18 anos, de 1954 a 1970. Chama-se o lugar Taiaçupeba.
Dali ele saiu em 1958 para receber a medalha de ouro do Conselho Internacional de Belas Artes, em N. York. Como partiu para suas exposições naquela cidade e em Paris, Bruxelas, Madri, Atenas, Tóquio, Singapura, entre outras. Na volta, desembarcava em Congonhas, São Paulo. E seguia prazerosamente para sua casa e o jardim deixados em Taiaçupeba, um bairro de Mogi das Cruzes ameaçado pelas águas de uma represa.
Cinzas e cores
Na China dos imperadores e dos primeiros anos deste século, havia um menino que aprendera a pintar com a mãe, como era costume entre as famílias tradicionais e abastadas. Seu pai era o dono de grandes salinas e de lojas de comércio em Sichuan, a capital de Chengdu, província banhada pelas águas volumosas do Yang Tze, o grande rio que desemboca no Mar da China.
Chengdu está no coração da China. E perto de Sichuan, a capital, fica uma cidade grande, Luitjan, com suas salinas. Aqui nasceu o oitavo dos nove filhos da família Chang. O irmão mais velho, San Tze, amava as artes. Cedo revelou-se um grande pintor. Especializou-se na pintura de tigres, conheceu o Ocidente, deixou dois de seus quadros na Casa Branca, em Washington. O oitavo Chang deixou influenciar-se muito pelo irmão, breve seguiria seus os.
Mas o menino tinha nove anos, aprendia com a família a ler e a escrever- e, um dia, estava à porta de sua casa, pintando, quando uma cigana se aproximou. Sobre o papel de arroz, o oitavo Chang fazia correr o pincel molhado no preto, que era a tinta obtida de cinzas, e no liquido com cores produzidas por sais minerais. A cigana deslumbrou-se com a pintura. Pediu ao pequeno artista que lhe pintasse cartas para ler a sorte. E pagou pelo trabalho. Foi o primeiro dinheiro que o oitavo Chang ganhou com sua arte.
Artes marciais
Tinha 12 anos quando foi mandado para a escola, numa cidade distante de sua casa, Chung King. No internato chamado Chuich’ing, o oitavo filho da família Chang revelou-se garoto levado, extrovertido. Com o irmão mais velho aprendera artes marciais, e, à custa de seu temperamento e dos segredos desta arte, liderava grupos que se batiam ao cabo de grandes rixas. Já estava com 14 anos num dia em que, de volta para casa, com um irmão e dois amigos, foi seqüestrado.
O grupo batia a pé quilômetro após quilômetro da terra onde vive a mais antiga civilização do mundo, os pés calçados por suas sapatilhas de pano, as trouxas de roupas balançando nos ombros — viajava assim quando os sequestradores. os atacaram. Chang e um de seus amigos foram apanhados.
Durante cem dias aram de grupo em grupo, entre bandos diferentes Eram obrigados a escrever cartas para casa, pedindo resgate em dinheiro. Os bandidos descobriram em Chang boas qualidades para esse mister: ele escrevia bem e corretamente. Assim, era muito solicitado, mas também o obrigavam a participar de assaltos. O rapaz pintor ficava com o posto de vigia. Mas os chefes logo perceberam o engodo. E exigiram que roubasse alguma coisa. Assim fez ele. Pegou um livro. A família Chang procurava por todos os meios seu oitavo filho. Queria pagar o resgate, mas nem para isso conseguiam contato. Até que uns soldados entraram em luta com os sequestradores e o rapaz e o amigo conseguiram escapar.
Essas histórias foram contadas e repetidas por muito tempo, entre os Chang. Hoje podem ser lembradas, aqui em São Paulo, pelos três filhos do artista que não o seguiram quando, em 1970, ele deixou o Brasil. As recordações de família mostram ainda o pintor, rapaz, aprendendo química. Usando seus conhecimentos para fabricar unia bomba para, com um amigo, jogá-la em um prédio público durante uma manifestação de estudantes, em Chun King.
Sempre chinês
Uns poucos anos depois era um moço de 18 anos que chegava a Shangai, na foz do Yang Tze, para aprimorar seus estudos. Mas logo mudava para Tóquio, onde, numa escola de artes e ofícios, aprenderia a técnica da tintura de tecidos. Desde logo, mantinha e postura que o acompanharia por toda e vida. Por ser chinês, só falava em sua língua nata. Vestia-se com túnicas chinesas e valia-se de um intérprete, que lhe traduzia ensinamentos e conversas. Na verdade, aprendera a falar japonês. Mas, da mesma forma que mais tarde faria em países como o Brasil e os Estados Unidos, só falava chinês.
Ao voltar a Shangai. depois de quatro anos no Japão, encontrou doente uma moça que lhe tinham destinado para o casamento. A moça acabou morrendo e Chang, por triste, resolveu ser monge. Sem que ninguém soubesse, viajou para um convento budista, onde ganhou os dois últimos nomes: Dai-Chien, cuja tradução literal é Grande Universo. Mais uma vez, a família preocupada. O irmão mais velho, também vivendo em Shangai, busca por todos os lados o desaparecido. Mas, no convento, este rebela-se: resolve não aceitar as disposições de uma vida religiosa; portanto não é sagrado monge. Por esse tempo, San Tze, o irmão mala velho, encontra-o. Aplica-lhe uma imensa surra e leva-o de volta para casa.
Ei-lo de volta a Luitjan, a cidade em que nascera. A mãe apressa-se: arruma-lhe uma noiva. Compromissos de família, noiva designada. Casam-se, mas não são felizes. E, agora com 23 anos, Chang Dai-Chien volta a Shangal, buscando dedicar-se de uma vez à pintura. Toma por mestres dois pintores famosos, Lee Mae An e Tseng Loon Shi. Este começara a pintar depois dos 60 anos. Até então, dedicara-se a outra soberba arte oriental, a caligrafia
Sobre a arte de desenhar os caracteres da escrita chinesa, o próprio Chang Dai-Chien diria, quando mestre consagrado “Esta é uma verdadeira e difícil arte. Em alguns casos,é necessária uma vida para se chegar á perfeição” O oitavo filho Chang mostrava grande facilidade para a a caligrafia. Isto, considerava-se, era indício certo de que daria um bom pintor.
Os mestres de Chang tinham coleções de quadros muitos antigos e ele pôs-se e copiá-los. Queria aprender-lhes a técnica. E dessa forma tomou um grande gosto por aquelas obras, especialmente as de pintores do século XVII, como Pa.a Shanjen, Shih-T’ao e Chang Feng. Uma exposição de jovens talentos, em Shangai, revelou-o. Aos 28 anos, Chang Dai-Chien já era famoso na China. E desde então não parou de viajar.
Se nos tempos de estudante viajava a pé, agora se comprazia com as longas viagens feitas de navio pelo Yang Tze. De seus deslocamentos, sempre resultavam esboços e anotações. Muito mais tarde, em 1968, num lugar remoto que provavelmente não sonhara conhecer, que ficava nas Américas e chamava Brasil, em sua casa de Mogi das Cruzes o mestre pintou um quadro de 15 metros. Mostrava o Yang Tze, da nascente à foz, com todos os povoados, cidades e configurações geográficas que havia em suas margens.
Vida livre
Mas, em uma nova volta à sua cidade natal, o artista casou mais uma vez, com uma moça que ele escolhera e o faria feliz. Juntava-se o clã dos Chang. Dai-Chien e o irmão mais velho ensinavam sua arte a discípulos; o mesmo fazia o quarto irmão, médico naturalista. No Dai Foon Tang, o Limiar do Grande Vento, os filhos dos mestres e os discípulos tratam-se como irmãos. Estes adotavam o nome da família dos mestres e apenas um prefixo de seus nomes os diferenciavam dos filhos.
A vida corre livre para Chang Dai-Chien. Ele visita as Montanhas Amarelas e em 1931 representa o governo chinês como delegado a uma exposição de artes das dinastias T’ang, Sung, Yuan e Ming, no Japão. Mas demora-se por lá, em viagens pelo país que resultam em esboços de paisagens, jardins. Em 1932, é possível encontrá-lo vivendo num palácio de verão às margens do lago Kunming, perto de Pequim. Logo mais participará de exposições de suas obras em Paris, depois Londres.
O começo da guerra sino-japonesa apanha-o em Pequim, com a terceira esposa, pois por essa época novamente se casara, e os primeiros dos 14 filhos que teria. Os japoneses invasores impedem o pintor e sua família de deixarem a cidade — mas eles escapam, voltam para Sichuan e depois refugiam-se nas montanhas Ch’ing-Cheng.
As exposições e vendas de quadros que lhes davam sustento ficam momentaneamente para trás, em 1940, quando Chang resolve viajar para as cavernas de Tung Huan, na porção Noroeste da China. A viagem mal começa, alcança o pintor uma má noticia: Chang San Tze, o irmão mais velho, morrera.
Tung Huan: afinal chegado, o pintor demora-se três anos. Nessas cavernas templos, depósitos sagrados de pinturas antigas, deslumbrou-se com a beleza dos afrescos medievais, datados de tantos séculos atrás. “Aqui está — diria mais tarde —, na verdade, um esconderijo de heranças do ado e um depósito sagrado de pinturas antigas". E Chang esmerou-se em estudar e copiar zelosamente aqueles tesouros.
O mestre, consagrado, continua em seu nomadismo, em suas viagens de estudos. A família cresce. Casa-se pela quarta vez, com uma colega de escola de sua filha mais velha, Hsu Wen Pu Chang, a esposa, vive hoje em Taipé, a capital de Formosa.
Mas a História ainda uma vez mudará o rumos do mestre. Em 1949, quando Mao toma Pequim, já Chang deixara o continente chinês com seus apetrechos de arte, coleções, quadros, a mulher e uma filha pequena (os outros filhos, espalhados pela China, optam por ficar). A ilha de Formosa, depois Hong-cong. Daqui o mestre vai à Índia, convidado para expor em Nova Delhi. E numa época muito produtiva, de viagem e trabalho, fica dois anos na Índia. Numa viagem de permeio a Hongcong, nasce-lhe o filho Chang Sing Yin, que seria criado em Mogi das Cruzes e hoje vive como arquiteto em São Paulo.
Em Mendoza
Mas o pintor e sua família acabaram voltando para Hongcong, onde encontraram-se com outros filhos. E, em 1952, quando, em busca de um lugar seguro para viver, e por sugestão de um padre amigo, embarcaram de navio para a Argentina. Chang e a mulher encabeçavam este grupo: sete filhos, o neto de um dos outros sete que tinham ficado na China Comunista, um mestre especialista em molduras chamado Wang, uma babá, uma camareira e quatro macacos gibãos trazidos da Índia. Assim chegaram a Mendoza, em 1952.
O padre Kao, o amigo que lhes falara da Argentina, incumbiu-se de revelar nos meios oficiais a importância do mestre chinês recém-chegado. E, contam os parentes de Chang que moram em São Paulo, o pintor foi recebido na Casa Rosada. Mas, por alguma razão — talvez o clima político —, Chang não devia estar multo feliz na Argentina. Em 1953, quando viajou aos Estados Unidos para uma exposição, voltou escalando vários portos da costa brasileira. Conheceu Salvador, entre outros. Em Santos, encontrou um amigo que lhe falou de um lugar bom, de excelente clima — e o levou a visitar esse paraíso.
Em certas ocasiões, no ano de 1954. os moradores de Mogi das Cruzes podiam ver, surpresos, um grupo exótico que caminhava solenemente pelas calçadas. O chinês de 51 anos, com a barba cultivada desde os 20, agora encanecida, vestido por bela túnica e gorro, atraía as atenções. Ao lado, sua mulher e um neto, ou neta. Atrás, os filhos e, por último, algum empregado. Abria o cortejo um intérprete, que podia ser um dos filhos.
Em principio, conta Chang Sing Yin, o filho arquiteto que mora em São Paulo, os chineses chegaram a ouvir algumas brincadeiras. Mas os locais logo compreenderam que ali ia um grande artista chinês. E aram até a pará-lo para fazer perguntas sobre sua vida, sua obra.
Desenhos e conversas
Por essa época, o mestre habitava uma casa ampla, num bairro de Mogi, alugada desde que chegara de mudança à cidade, vindo da Argentina, no mesmo ano de 1954. Na sala, entre os estofados e peças habituais, havia uma grande mesa, sobre a qual trabalhava. O papel estendido sobre a mesa, Chang desenhava figuras, em preto, e punha-as para secar. A cada hora, hora e meia, completava novos desenhos, num ritmo fértil de produção. Ao mesmo tempo, o pintor ia conversando com visitantes e parentes. Mais tarde, quando os contornos em negro secavam, recomeçava o trabalho, com as cores.
Sing Yin, o filho que está em São Paulo, era apenas um menino, nessa época. Mas pode recordar esses detalhes, assim como falará do sítio de capoeirão que seu pai — o mestre — transformou num jardim oriental. Foi dois anos depois da chegada a Mogi que o pintor pôs-se a visitar terras à venda na área rural do município. Um dia mostraram-lhe um sítio de seis alqueires, cortado , por um córrego. Isto animou Chang. Mas foi ao avistar um imenso e muito antigo pinheiro que ele se decidiu pela compra
O dinheiro? Bem, explica o filho, conta também Peter Lee, o marido de Chang Sing Pei, a filha do pintor que ainda mora em Mogi das Cruzes: o mestre ganhava muito dinheiro em suas exposições, mas gastava ainda mais com sua arte, seus caprichos artísticos. Em Mogi, perto do lugar onde comprara o sítio, viviam quatro famílias chinesas, dedicadas à terra e aos produtos granjeiros (uma delas a família de Peter Lee, que casaria com a moça Sing Pei). Estas pessoas financiavam o artista, que, depois de suas exposições no Exterior, pagava-lhes. E Chang continuaria a gastar muito dinheiro, entre outras coisas com os banquetes oferecidos a autoridades que o visitariam no jardim de Taiaçupeba.
Entre 1957 e 1961, quando toda a família, os empregados, os quatro macacos gibãos, os imensos baús com os tesouros artísicos colecionados ou criados por Chang mudaram para o sítio, grandes transformações aconteceram ali. A capoeira cedeu lugar primeiro à Pa-Te-luan, ou à Horta das Oito Virtudes, onde foram plantados três mil pés de caqui (o caqui tem, para os chineses, oito virtudes, entre elas bom gosto, bela aparência, favorece a digestão, etc). E mais tarde surgiu o magnifico jardim, que o mestre criou na exata maneira como produzia seus quadros, só que, no lugar das tintas, iam plantas e flores e cursos de água, lagos, pedras, veados, gatos, cachorros-do-mato, o casal de cisnes, os gansos, um pavão. E o próprio Chang, caminhando (como se disse na abertura desta matéria), completava a figuração desse quadro vivo
Ainda hoje é possível ver — e sentir— a beleza do que ele é e representa. A casa grande, sóbria e com o tom oriental dado pelo telhado, é a primeira coisa que se ve em Dai Foon Tang, o Limiar do Grande Vento. Aqui está um dos estúdios, o maior, que o mestre ocupava. Na casa menor, a primeira a ser construída, fica o primeiro estúdio. Essas duas casas foram ligadas por uma construção que abrigava o salão para banquetes e outras dependências. Nos estúdios vazios, uns poucos apetrechos de pintura lembram hoje a presença de Chang. Mas uma placa feita por ele, com os caracteres “que dizem Dai Foon Tang, um par dos óculos que usou e um pequeno altar erguido depois de sua morte marcam fortemente sua agem por ali.
Pinheiros, flores...
O jardim compõe-se de núcleos espalhados por quatro dos seis alqueires. Antes, adiante da casa, já se chegava aos bonsai, miniaturas naturais de pinheiros, antigos e valiosíssimas, obtidas pela técnica milenar do Oriente, que Chang aplicava. Ficavam a caminho do núcleo onde está o Lago dos Cinco Quiosques. Mas por aí mesmo ainda está uma dessas coisas que arregalam os olhos ocidentais, um pinheiro que, à custa de podas e amarrações com arame, ganhou a forma sugerida por seu nome: o Dragão Deitado. Adiante, outro pinheiro em que o tronco se transforma em dois corpos — duas árvores ligadas por um tronco como irmãos siameses.
A cada o, a mão do artista interveio na natureza. São dezenas de plantas, flores, composições, a pontezinha sobre o riacho, as pedras que serviam de mesa para o chá ou jogos, trazidas de lugares distantes. Ao pé de uma ameixeira vinda de Campos do Jordão (a flor da ameixeira é a flor nacional da China), uma lápide, com inscrições em chinês. Indicam ser ali o túmulo dos pincéis — homenagem do artista aos instrumentos que usava.
Uma ala de pinheiros leva ao Lago dos Cinco Quiosques, onde a variada vegetação criada nas margens, a pontezinha de linhas quebradas que une um e outro quiosque, a variedade de cores amenas — tudo oferece uma grande sensação de paz. De qualquer lado que se olhe, sempre se verá, ornando as margens, um belo trabalho paisagístico. Mas sempre será um cenário propositalmente diferente.
Adiante fica o lago, em certa época ornado com a flor de lótus, a predileta de Chang Dai-Chien. E que ele nunca pôde ver, neste seu jardim. Quando floresceram, estava fora do País. Alguns caminhos ainda estão meio recobertos por pedriscos brancos — um pouco do que sobrou do tempo em que o mestre resolvia caminhar à noite, quando lhe faltava o sono. A alvura dos pedriscos, refletindo a lua, dava-lhe direção.
Nos eios com a família, ou durante o chá nos quiosques, o mestre também contava fábulas. Ensinava a bondade (lembra Sing Yin), a importância da união da família, a necessidade de não se colocar o dinheiro como aspiração principal. Jamais (conta agora Peter Lee) vendia um quadro seu particularmente, mas era capaz de doá-lo a um amigo necessitado.
Os banquetes em Dai Foon Tang reuniam embaixadores, artistas, personalidades vindas do Exterior. A prodigalidade da mesa da casa dos Chang oferecia pelo menos 12 pratos preparados por uma cozinheira vinda de Honge Kong ou mestres de cozinha contratados a restaurantes típicos finos de São Paulo. As preciosas barbatanas de tubarão eram servidas em quantidades surpreendentes. Os banquetes coroavam um eio por aquele pedaço da China criado em Mogi das Cruzes.
Em busca das plantas
E esse trabalho deleitava Chang. As narrativas feitas por Sing Yin mostram o mestre e sua comitiva (porque sempre acompanhava uma comitiva) saindo para Atibaia, em busca de azaleas, ou a Campos do Jordão, para comprar pinheiros e ameixeiras, ou a ltaquaquecetuba, atras de flores, ou a Pirapora, para indicar pedras que seriam retiradas do leito do rio Tietê. Embarcava numa Kombi, dirigida por Chang Sing Yin, o mais velho dos filhos que deixaram a China. Junto iam empregados para lidar com as plantas, transportá-las. Na volta, faziam um lanche qualquer, num bar de beira de estrada.
Mas, uma vez chegados, corria o mestre para mexer em seu jardim. Dava ordens em chinês, que um intérprete traduzia. E mexia sempre. A cada tempo, esta ou aquela parte transformava-se. Com o correr dos anos, já era um novo jardim que nascera. Um novo quadro fora criado.
Com grande freqüencia, a ala internacional do Aeroporto de Congonhas enchia-se de chineses. Era a comitiva de despedida do pintor que ia expor no Exterior. Em 1956, quando o jardim oriental era apenas um projeto, o mestre esteve na Europa. Certo dia voou para Monte Carlo, onde o esperava Picasso. O encontro fora combinado por amigos de ambos e amantes da arte.
Durante bom tempo, o Ocidente e o Oriente conversaram com palavras traduzidas. E por uma linguagem comum, a das tintas. Disso resultou uma grande amizade e um quadro de traços suaves, oferecido ao mestre espanhol, e outro, de linhas fortes, oferecido ao mestre chinês.
Em 1968,o diabetes, a catarata e problemas cardíacos fizeram declinar a saúde de Chang Dai-Chiar. Ele sofreu uma operação na Califórnia E seus amigos não deixaram mais de insistir para que morasse nos Estados Unidos. Mostrararn-lhe várias cidades até chegarem a Carmel, na Califórnia. Aqui, o mestre comprou uma casa. De volta ao Brasil, mandou para lá o filho mais velho e um outro, que pensavam estar viajando a turismo. Mas, pouco depois, seguiram os baús, muitas plantas, bonsais, pedras tirados do jardim de Mogi das Cruzes. E. finalmente, a família.
Deixando o jardim
O mestre viajou de vez em 1970. Ficaram aqui apenas Chang Sing Yin, então estudante de arquitetura, sua irmã Chang Sing Pei, casada com Peter Lee e já mãe de uma filha; e o quarto dos irmãos que tinham vindo para a América, Chang Sing Yee, que ficou cuidando do jardim. Na nova casa, nos Estados Unidos, logo mestre Chang criou o seu jardim — num terreno de dimensões urbanas. Isso o desagradou. Mudou então para uma ampla casa em Pebble Beach, que tinha para seu jardim um espaço de 150 metros quadrados...
Ainda uma vez, em 1973, voltou a Mogi das Cruzes. Reviu deliciado o seu jardim de quatro alqueires, mexeu um pouco nele. E partiu para sempre.
Em Pebble Beach também fazia excursões de busca a plantas. Mas agora ia num automóvel, seguido por um furgão com os empregados. Encontrava (conta Sing Yin) plantas já preparadas para a venda. Pagava caríssimo por uma ameixeira. Certa vez viajou oito horas de carro, até perto de Los Angeles, à procura de flores.
Afinal, em 1976, deu-se sua volta ao Oriente. Começou com um convite oficial do governo de Formosa e o reencontro com velhos e saudosos amigos. Depois foram os apelos, os mimos. O mestre mudou-se, com sua mulher, para um apartamento em Taipé, a capital. Os filhos ficaram nos Estados Unidos, como haviam ficado na China e no Brasil, em outras ocasiões.
Em um ano, já Chang tinha comprado um terreno no ponto em que dois belos rios de Taipé se encontram, na periferia da cidade. O arquiteto que construíra a casa do presidente da República foi logo mobilizado. Em oito meses ergueu magnífica moradia com dois estúdios e pavimentos internos ligados por elevador. E Chang, mais lima vez, pintou o seu jardim.
Agora já quase não podia viajar. Talvez por impaciência, mudava com mais frequência o rosto de sua obra. Também recebia muito, copiosos banquetes para artistas de todas as áreas (os da Opera Chinesa logo o procuraram, porque também amava a música). Entre os visitantes, certa vez, estiveram uma deslumbrada princesa Grace, de Mônaco, e o príncipe Rainier. E viram o que o mestre fazia: ele mandou avançar um grande muro para dentro do rio que corria ao lado, para obter um efeito especial em seu jardim, (e as autoridades mostraram-se encantadas porque era necessário manter mestre satisfeito).
A saúde cio pintor melhorara, mas os médicos estavam atentos. Sobretudo não devia esforçar-se muito, diziam-lhe. E era como se dissessem o contrário. Na casa, quatro enfermeiras revezavam-se em plantões de seis horas. Ás vezes o mestre, que dormia cada vez menos, erguia-se da cama e apanhava seus pincéis. Uma enfermeira o seguia até o ateliê.
Filósofo e pintor
A visão de Chang piorava e, quando não descansava o suficiente, tremiam-lhe um pouco as mãos. Mas ele continuava a pintar, a desenhar os caracteres que os chineses integram a sua obra, mensagens que explicam um quadro, transmitem um pensamento, resumem uma filosofia. O filósofo e pintor estiveram juntos nos quadros de Chang Dai-Chien, até março ultimo.
Algum tempo antes terminara os quadros com os quais presenteava seus médicos e enfermeiras, no ano novo chinês, em fevereiro. Concluíra, também, depois de um ano de trabalho, um quadro de dois e meio por 30 metros, destinado a um grande amigo. Estava muito cansado, embora não o itisse. Duas semanas antes de março teminar sofreu uma parada cardíaca de cinco minutos, num leito de hospital para onde fora levado, muito doente, dias antes. Os filhos chegaram do Brasil, dos Estados Unidos e da China Popular a tempo de vê-lo viver sem existir. E, finalmente, em dois de abril, de vê-lo morrer.
Os jornais de todo o mundo— incluindo São Paulo — noticiaram a morte do pintor. Na imprensa de Formosa, o fato ganhou grande destaque. Todo o Ministério esteve nos funerais. O corpo de Chang Dai-Chien, foi cremado e suas cinzas jogadas sob uma pedra, em seu jardim. A família doou a casa ao governo. E o acervo foi transferido para o Museu Nacional de República da China.
A milhares de quilômetros de distância, nesse lugar chamado Mogi das Cruzes, há quadros do mestre pendurados na casa de sua filha. São presentes de aniversário ganhos por Sing Pei e por sua filha brasileira. Sing Pei e seu marido Lee guardam também preciosidades, como carimbos que Chang usava para marcar seus quadros (são vários carimbos, com diversos significados), bastões de tinta e pedra para dissolvê-los e um pincel de pêlo de orelha de boi de um lote feito especialmente no Japão. Quatro destes o pintor mandou de presente para Picasso há muitos anos.
E, na mesma Mogi das Cruzes, em Taiaçuupeba, há o jardim, mais ou menos preservado. Distante alguns quilômetros, está quase pronta uma barragem no rio Jundiaí,para preservação de mananciais. Quando estiver concluída, e as águas subirem, a obra deixada pelo mestre chinês se transformará num belo jardim oriental submerso.
JORNAL DA TARDE
Por 46 anos [de 4 de janeiro de 1966 a 31 de outubro de 2012] o Jornal da Tarde deixou sua marca na imprensa brasileira.
Neste blog são mostradas algumas das capas e páginas marcantes dessa publicação do Grupo Estado que protagonizou uma história de inovações gráficas e de linguagem no jornalismo.
Um exemplo é a histórica capa do menino chorando após a derrota da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1982, na Espanha.
